estava vendo o que podia ser
adequadamente descrito como
a cara de um judeu. Realmente, um judeu entrara em
seu banheiro.
Os óculos fizeram exatamente o que temia que fizessem ao seu
rosto,
mas agora era pior, porque era real.
(MILLER, Arthur.
Focus, pag. 32)
Focus foi o romance de estreia do
escritor estadunidense Arthur Miller, mais conhecido por suas peças de teatro.
Lançado em 1945, trata do anti-semitismo praticado em Nova York, nos EUA, no
final da Segunda Guerra Mundial.
Lawrence Newman
é um empregado da Company, uma empresa anti-semita muito respeitada no país. Mora
com a mãe e não se deixa abalar com os problemas alheios, como uma mulher
gritando no meio da noite, clamando pela polícia. Seu vizinho, Fred, é um homem
que apoia a limpeza da cidade — com
“limpeza”, leia-se “expulsão dos judeus que ali vivem”. O único judeu do
quarteirão, Mr. Finkelstein, é um vendedor de jornais que não interfere de
maneira negativa os outros moradores, apesar de ser tratado como “criminoso” por
ser judeu.
A vida de Newman
ficara um tanto monótona e acomodada, depois de ter participado da guerra e ser
responsável pela morte de um alemão. Agora possuía um emprego como recrutador
na Company. Quando seu chefe o chama para uma conversa, tudo como conhecia
começa a mudar, ou melhor, todas as máscaras começam a se desvanecer.
O chefe observa
que Newman contratou uma mulher inadequada para a profissão de datilógrafa, e
esse erro era devido ao fato de Newman não enxergar bem. Ao passar no oculista
e experimentar em casa os novos óculos, Newman se espanta com o que enxerga no
espelho. Um judeu. Newman é descendente de ingleses e é cristão, porém seu
rosto se assemelha a de um judeu quando usa óculos.
De início, tenta
não dar muita importância ao fato. No entanto, é despedido da Company porque
sua aparência levou seus superiores a questionarem sua identidade. E não para
por aí. Na procura por um novo emprego, é sempre visto como um judeu; seus
vizinhos começam a estranhá-lo e a Frente Cristã passa a tê-lo e à sua mulher
Gertrude Hart e ao Mr. Finkelstein como alvos para uma limpeza.
O que parecia
simples se torna o maior problema que lhe fora submetido: a identidade alheia,
o ser judeu.
Focus, de Arthur Miller |
Então, que
diabos poderia fazer para mostrar a essa gente que ainda era Lawrence Newman?
O rosto. Parou junto
a um poste de luz numa esquina. Mas o seu rosto não era ele. Ninguém tinha o direito de menosprezá-lo por causa do rosto.
Ninguém! Ele era ele, um ser humano
com uma biografia definida, e ele não era esta cara que parecia nascida de
outra biografia, estranha e suja. Estavam querendo transformá-lo em duas
pessoas! Olhavam para ele como se fosse culpado de alguma coisa, como se fosse
feri-los! Não podiam fazer isso! Que não ousassem fazer-lhe aquilo, pois não
era outra pessoa senão Lawrence Newman…!
(MILLER, Arthur. Focus, pag. 72)
Demorei algum
tempo para terminar de ler o livro, por conta da vida universitária. Mesmo
lendo-o de gole em gole, consegui me conectar com a história e dizia a algumas
pessoas que estava lendo um livro incrível. Quando comprei Focus, não fazia ideia do enredo. Não havia nada escrito na contracapa
e também não havia orelhas. O nome do autor me impeliu a adquirir o livro, pois já tinha lido sua peça de teatro ganhadora do prêmio Pulitzer Morte de um Caixeiro Viajante, resenha aqui, e
não me arrependo. Mergulhei numa história com o tema que tanto é analisado mas
que foi escrito de uma maneira diferente na época em que tudo estava
acontecendo. A audácia do autor foi imensa ao criar um personagem cristão e
descendente de ingleses que, ao usar óculos, tinha a aparência de um judeu e
por isso passou a sofrer preconceito. Colocou os leitores na pele da personagem
principal: e se começassem a nos enxergar pelo que não somos e praticassem
violência conosco por conta disso? Curiosidade: Miller era filho de um casal de
imigrantes judeus polacos.
A estratégia de
Miller me lembrou a estratégia de Bernardo Guimarães na criação de A Escrava Isaura, clique aqui, uma escrava branca
linda. Guimarães sabia que as mulheres de classe média leriam o livro e a
maneira para fazê-las entender a escravatura como algo abominável, colocando
uma escrava branca, que se
assemelhava a elas, porque ler sobre uma escrava negra sofrendo não seria nada inédito e não criaria empatia.
Em 2001, foi
lançado o filme baseado em Focus,
dirigido por Neal Slavin e estrelado por William H. Macy como Lawrence Newman,
Laura Dern como Gertrude Hart, David Paymer como Mr. Finkelstein e Meat Loaf
Aday como Fred.
A linguagem é
fácil, fluida. O livro possui pouco mais que 200 páginas de vários momentos de
tensão. Minha opinião é que Arthur Miller escolheu a história certa para
estrear no mundo do romance literário, e deixa suas palavras flutuando na luta
eterna dos judeus. Acontecimentos recentes provam que 1945 permanece mesmo em
2014.
— (…) O senhor
olha para mim e não me vê. Vê outra coisa.
Pode me dizer o que é? É isto o que
não entendo. Contra mim
o senhor não tem nada, é o que diz. Então, por que quer
me
tirar daqui? O que é que vê que o deixa tão furioso quando olha para mim?
(MILLER, Arthur. Focus, pag. 166)
Escrito por MsBrown
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